Se há uma coisa de que posso me gabar, é que pouquíssimos filmes de terror me abalaram ao longo da vida, mesmo quando eu era criança.
Não que eu tenha sido destemido todo esse tempo, de forma alguma (eu tive medo de barata até os 11 anos), mas porque eu sabia que tudo era faz de conta. Os monstros na tela não passavam de atores com maquiagem pesada, os litros de sangue eram efeitos visuais, e todo o horror que compunha estas obras tinha saído da mente criativa de algum roteirista que morava numa cobertura em Hollywood.
A Mosca foi a primeira exceção a esta regra. Fiquei completamente apavorado ao assistir, ao ponto de tremer incontrolavelmente durante a maior parte da história. De fato, dentre todos os longas aqui debatidos, este é o único que me recusei a assistir uma segunda vez. Então vou escrever este artigo com base nas memórias que tenho dele.
Estamos entendidos?
Vamos em frente então.
Sim, vamos. Porque até o momento, Jeff Goldblum não está impressionado |
Aqui conhecemos Seth Brundle (Jeff Goldblum), um cientista que está trabalhando na tecnologia do Telepod, cápsulas que permitem a seus usuários se tele transportarem a longas distâncias. Aposto que todos assistiram ficção científica ao crescer e sabem do que se trata.
Em uma coletiva de imprensa, ele conhece Veronica Quaife (Geena Davis) uma repórter interessada na matéria dos Telepods. Brundle pede a ela que não publique a história ainda, apenas quando sua tecnologia estiver pronta, em troca de direitos exclusivos sobre a história. A moça passa a acompanhar o desenvolvimento da tecnologia, os dois se dão bem, e começam um relacionamento romântico.
Após muitas dores de cabeça e fracassos (em um teste, os Telepods viram um pobre babuíno do avesso), a experiência dá certo. Seth quer comemorar com Veronica, mas ela não pode ficar com ele naquela noite. Assim, nosso herói enche a cara, tem uma crise de ciúmes, e como sempre acontece quando estas duas coisas se misturam, ele toma uma péssima decisão: Usar a si mesmo como cobaia para sua tecnologia.
Aparentemente, tudo corre bem e Seth sente uma melhora notável em seu físico. Ele tornou-se mais forte, resistente e energético. Mas seu humor também muda, e ele passa a apresentar uma euforia incontrolável, e uma agressividade que parece crescer a cada dia.
Infelizmente, isso é apenas o começo. As unhas de Seth começam a cair, e neste momento ele percebe que deu algo de errado com o tele transporte. Ao checar seus computadores, ele descobre que uma mosca doméstica entrou na cápsula com ele, e o computador acabou por fundir ambos em uma só criatura.
Aos poucos, o corpo de Seth passa por uma mutação grotesca, e sua mente se perde em meio aos instintos básicos e primitivos de um animal. Em uma desesperada corrida contra o tempo, ele tenta encontrar uma cura para sua condição... Mas existem abismos dos quais não é possível escapar.
A carreira de Geena Davis caiu em um desses, infelizmente |
A exemplo do que acontece com seu protagonista, A Mosca tornou-se praticamente uma aberração entre os filmes de terror da sua época.
Em 1986 (ano de seu lançamento) o gênero Slasher estava a todo vapor. Jason Voorhees e Freddy Krueger haviam se tornado as novas faces do horror, e as pessoas assistiam estas produções para se divertir. Era engraçado ver todas as novas e criativas formas como os monstros se livravam de suas vítimas, assim como ficávamos entretidos ao vê-los serem derrotados por uma (quase sempre) heroína que parecia ser fisicamente incapaz de se defender de um esquilo.
A Mosca ia pelo sentido contrário. Ao invés de trazer uma história engraçadinha e boba, nos apresentava um poderoso drama humano, com o qual nos envolvíamos intimamente. Não haviam vilões a serem derrotados, intervenções divinas em prol dos mocinhos ou qualquer um dos clichês que tornaram-se o alicerce deste tipo de obra. Mesmo o monstro aqui presente não era fruto de um mal incompreensível, mas apenas um homem que foi vítima do próprio intelecto.
A narrativa nos permite acompanhar todos os estágios deste momento da vida de Seth Brundle. De sua empolgação com o trabalho, ao romance que desenvolve com Veronique, ao seu acidente e todos os estágios de sua horrenda mutação. Gostamos dele, e é doloroso ver seu corpo se decompor bem diante de nossos olhos. Torcemos para que ele encontre uma saída, mas no fundo sabemos que aquilo que lhe aconteceu é irreversível.
E também sofremos por Veronique, vítima impotente da situação. Que tem de se conformar em assistir a lenta agonia de seu amado, sem poder fazer nada para ajudá-lo.
David Cronenberg, diretor do longa, disse que ele era uma metáfora abrangente a qualquer tipo de doença, mas que também se referia ao processo de envelhecimento. Como a mutação do personagem de Goldblum podia ser encarada como uma versão mais grotesca de algo pelo qual todos passaremos um dia.
E talvez tenha sido isso que me horrorizou tanto. Foi graças a este filme que tive consciência de minha mortalidade, e acho que este é um conceito pesado demais para um garoto de nove anos processar.
Quem diria? Escrever este artigo foi catártico!
Talvez eu esteja pronto para vê-lo novame... NÃO! Não. De volta ao ponto de partida. |
A Mosca foi indicada ao Oscar de 1987, por Melhores Efeitos Visuais, e acabou levando a estatueta para casa.
Mas se querem saber minha opinião, isso não foi o bastante. Por todos os aspectos que olharmos, a obra de David Cronenberg é brilhante. Seu roteiro é incrível, seus personagens funcionam, e o drama é poderoso, sem cair na pieguice.
Isso sem falar nas atuações de Jeff Goldblum e Geena Davis, que conseguiram dar uma seriedade incrível a um roteiro bastante fora da realidade. Nas mãos de protagonistas menos talentosos, A Mosca poderia ter sido uma comédia involuntária, uma paródia de si mesma, ao invés do diamante que acabou se tornando.
Assim, por que Cronenberg, Goldblum e Davis não receberam nomeações aos prêmios da Academia por seus esforços? A Mosca merecia estar ao lado de Platoon (grande vencedor daquele ano), Filhos do Silêncio, Hannah e suas Irmãs e A Missão, na disputa pelo prêmio máximo. Por que apenas seus efeitos visuais foram reconhecidos, como acontece a tantas fantasias genéricas da atualidade?
Infelizmente, foi porque horror perdeu o prestígio em meio às artes cênicas.
Alfred Hitchcock criou Psicose, e mostrou que uma história assustadora poderia se tornar um clássico atemporal. Logo, Diversos diretores estavam tentando causar pesadelos na platéia. Roman Polanski nos deu O Bebê de Rosemary, William Friedkin lançou O Exorcista, Richard Donner fez A Profecia, e mesmo Steven Spielberg teve sua carreira catapultada para a estratosfera com um pequeno filme chamado Tubarão.
Grandes cineastas deram muito requinte ao gênero. Seus trabalhos eram levados a sério, e muitas vezes, colocados no mesmo nível de respeito que películas dramáticas, normalmente, consideradas aquilo que a indústria tem de melhor para oferecer.
Infelizmente, filmes de terror podem ser produzidos rapidamente e a baixo custo, o que os torna ideais para diretores iniciantes. E graças ao pequeno investimento, e alto lucro que eles proporcionam, os estúdios sempre gostam de bancá-los, pois sabem que na maioria das vezes, o retorno financeiro é garantido.
Graças a isso, tivemos uma enxurrada de produções terríveis e com qualidade pouco superior a do cinema pornô. Separar o joio do trigo tornou-se uma tarefa hercúlea, mesmo para o mais fiel amante do gênero, e os maiores críticos e apreciadores da Sétima Arte decidiram colocar todas as produções de terror no mesmo balaio, como meros caça-niqueis criados para satisfazer a sede de sangue de adolescentes hiper estimulados.
A Mosca acabou perdendo-se em meio a todos os retornos de Jason, Freddy e Michael Myers, e nunca recebeu o devido reconhecimento da Academia.
Hollywood explorou o terror até torná-lo banal, depois o desprezou, ignorando o monstro a quem tão alegremente deu vida anos antes.
Um Prometeus Moderno...
Dificilmente encontrarei um filme mais adequado para descrever com tais palavras |
A Mosca é uma obra profunda, capaz de mexer com o espectador. Você nunca chega ao seu final como a mesma pessoa que começou.
Acima de tudo, a tragédia de Seth Brundle evoca um sentimento terrível de solidão. Assim, se tiver a oportunidade, assista esta pérola ao lado de sua esposa, namorado, amante, enfim, daquela pessoa especial que existe em sua vida. Poucos filmes farão com que se sintam mais próximos um do outro.
Cheers!!!
Talvez esse filme fora subvalorizado por conta de ser um remake...
ResponderExcluirMas ele se distancia tanto do original de 1958 de um jeito bom e muito mais dramático que nem dá pra considerar uma refilmagem... Não sei se é o apelo afetivo por ter visto esse quando criança, mas considero o de 86 muito melhor...
Acredito que vale a pena rever, eu mesmo fiquei com vontade...
Minha mãe tem trauma do filme, por causa dele ela tem pavor clínico de moscas até hoje. Não consegue comer se tiver mosca perto e passa mal se pousarem nela ou algo que ela comeu/está comendo.
ResponderExcluirEsse filme é incrível. A primeira vez que vi, ele tava na metade passando no Corujão da Globo - eu era criança também. Depois corri atrás do VHS pra assistir.
ResponderExcluirClássico, um dos meus favoritos.
Pó Ryu, eu também assisti esse filme num Corujao da Globo. Me lembro desse filme da cena onde o Jeff Goldblum quebrava facilmente o braço de um motoqueiro numa queda de braço. É lembro onde a fase final da mutação em mosca era horrível.
ExcluirEste também fez estréia na TV brasileira por meio da Tela Quente, que nem sua continuação.
ResponderExcluirNunca vi por completo. Me lembro das partes em que o cientista, já em estado avançado da transformação, vomita numa mão e numa perna de um mesmo cara e na frente da namorada/repórter.
A Geena Davis sempre foi uma gata, não? E mais tarde, foi até mãe adotiva do Stuart Little! Hehe!!
Eu tive a chance de assistir A Mosca quando era criança mas... minha mãe não deixou. Sim, existiu uma época em que nossas mães efetivamente se preocupavam com as coisas que víamos/fazíamos, e quando uma mãe proibia você OBEDECIA. Só fui assistir depois de adulto. E mesmo assim, o filme é chocante em muitos aspectos.
ResponderExcluirNunca tinha pensado por esse ponto de vista que o Amer citou, que a mutação é uma alegoria ao envelhecimento, mas pensando bem é exatamente isso (de uma forma mais rápida e nojenta); eu sempre pensava que, na verdade, era uma referência a Kafka (A Metamorfose), em que um homem se transforma num inseto gigante, mas consciente e passa a ser rejeitado pela sociedade, e agora acredito que o filme seja uma referência aos dois. Mas A Mosca vai muito além disso. Pena que, por causa do preconceito com filmes de terror, ele acabou sendo muito subestimado em suas características filosóficas e só deram o devido crédito ao apelo visual.Pelo menos A Mosca ganhou o Saturn Award de melhor filme de terror, triste prêmio de consolo. (só uma correção, Amer: quem primeiro percebe que há algo errado com Seth é Veronica, ele acredita inicialmente que a passagem pelo pod "limpou" suas moléculas o tornando um ser humano mais "puro" e se recusa a acreditar até mesmo nos testes de laboratório, só se convencendo do horror que aconteceu quando investiga os dados da experiência).
Uma pena que o legado desse filme foi o chato A Mosca II, um filme que praticamente deixa de lado a filosofia e se concentra apenas no apelo visual para tentar se sustentar; a continuação pelo menos demonstra o que seria o primeiro filme na cachola dos cabeças de Hollywood: um filme de terror barato, com bons efeitos especiais e nenhuma atuação ou enredo decente.
Quanto ao filme original, A Mosca da Cabeça Branca, também assisti ele depois de adulto (e depois de ver A Mosca e sua continuação). Embora seja bem mais fiel à história original (que foi publicada na Playboy americana!) A Mosca da Cabeça Branca é um filme que envelheceu um tanto mal; ainda é um terror decente (ainda mais para a época) como Petshop of Horrors, mas está longe das questões filosóficas do filme de 1986. E é melhor do que A Mosca II, com toda certeza.
Lembro de três filmes que não consegui terminar de assistir na minha infância/adolescência porque me assustaram ou incomodaram demais: O Exorcista, Se7en e esse. Felizmente depois de algum tempo tive coragem e estômago suficiente para revê-lo e perceber o quão bom é esse filme. A cena final onde o protagonista totalmente dominado pelos instintos da mosca ainda mostra algum sinal de humanidade é extremamente triste.
ResponderExcluirExcelente review Amer e não perca a oportunidade de assisti-lo outra vez.